No dia 28 de agosto de 2020, a Receita Federal demandou ao Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) a abertura de uma investigação interna sigilosa para identificar auditores que teriam vasculhado os dados fiscais do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). O pedido ocorreu três dias após o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) se reunir com advogadas do parlamentar e sugerir uma conversa com o chefe do Fisco para avaliar o inquérito que apurou possível prática de “rachadinha” no gabinete do filho “01″ do presidente. Além disso, José Tostes Neto, então secretário especial do Fisco, recebeu a defesa de Flávio Bolsonaro, incluindo, em um encontro, o próprio senador, por três vezes depois da determinação do presidente.
A reportagem procurou a Receita Federal e o Serpro, mas não obteve retorno até o momento.
A análise de um possível vazamento de dados era uma estratégia da defesa de Flávio que pretendia descobrir se auditores teriam repassado ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) dados fiscais que deram origem ao inquérito das rachadinhas que envolvia ele e o ex-assessor Fabricio Queiroz. Na época das supostas ilegalidades, o senador ocupava uma vaga na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj).
O encontro com a sugestão de Bolsonaro ocorreu em 25 de agosto de 2020 e não estava na agenda oficial do presidente. A transcrição do áudio encontrado pela Polícia Federal (PF) revela que, durante o encontro, o então presidente afirmou que a situação diante do inquérito contra Flávio poderia ser “o caso de conversar com o chefe da Receita”. Também participaram da reunião o então ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, e o então diretor da Abin, Alexandre Ramagem.
As advogadas Luciana Pires e Juliana Bierrenbach, que representavam Flávio, estavam na reunião e, no dia seguinte, participaram de agenda com José Tostes Neto, então secretário especial do Fisco. Tostes também recebeu Flávio Bolsonaro.
Conseguir uma agenda com um agente público para obter informações sobre um processo específico não só é incomum como infringe o preceito de impessoalidade da gestão pública, segundo Marco Antônio Teixeira, cientista político e professor do Departamento de Gestão Pública da FGV/EAESP. Já para Felipe de Melo Fonte, professor de Direito da FGV do Rio de Janeiro, pode haver sanção ao ex-secretário até no âmbito regimental por conta dos encontros. “Se ele (José Tostes) ofereceu a expertise dele para tratar de um processo penal, isso, segundo os regulamentos da atividade da Receita (Federal) não é permitido”, diz Fonte.
Em nota, a advogada Luciana Pires disse que sua atuação na reunião “se deu de forma técnica e nos estritos limites do campo jurídico”. A advogada Juliana Bierrenbach, por sua vez, disse que uma reunião do gênero era “necessária” diante da situação do processo envolvendo Flávio, mas que não tinha conhecimento prévio de que o então presidente estaria na audiência.
O sigilo da gravação foi suspenso nesta segunda-feira, 15, pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. Após a divulgação do material, Fabio Wajngarten, ex-assessor e advogado de Jair Bolsonaro, saiu em defesa do ex-presidente, alegando que a conversa exposta “só reforça o quanto o presidente ama o Brasil e o seu povo”.
Segundo o jornal Folha de S. Paulo, a petição feita pelas advogadas de Flávio foi enviada para a Receita no dia 25 de agosto de 2020, o mesmo dia da reunião com Bolsonaro e Ramagem. No documento, encaminhado para Tostes Neto, é solicitado que o Fisco levante “todas as pesquisas de seu nome (o de Flávio) de sua esposa e de suas empresas, que tenham sido realizadas desde o ano de 2015″.
Inicialmente o pedido de apuração sobre possível vazamento de dados incluía apenas Flávio e a mulher dele, a psicóloga Fernanda Bolsonaro. Porém, posteriormente foram incluídos também o ex-presidente, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, os outros dois filhos políticos (Carlos e Eduardo) e as duas ex-mulheres de Bolsonaro: Rogéria Bolsonaro e Ana Cristina Siqueira Valle.
Na gravação da reunião, há um trecho onde as advogadas apresentam que a intenção delas é fazer com que o Serpro produzisse “provas” da suposta “devassa” na vida do senador. O deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), que na época era o diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), informou que o órgão não forneceria os dados, pois eles eram protegidos por sigilo fiscal e bancário.
“Eu estou querendo te ajudar no caminho, pelo critério que vocês estão no caminho de demonstrar uma nulidade indevida, que esse é o ponto nodal da questão”, disse o parlamentar.
Durante o governo do ex-presidente, a cúpula da Receita era considerada estratégica por Flávio após o pedido de apuração interna. Esse foi um dos motivos para a nomeação de um simpatizante de Bolsonaro, em fevereiro de 2022, para o cargo de corregedor geral.
Receita disse a deputados que pagou R$ 490 mil para Serpro realizar a apuração
Em dezembro de 2021, três deputados do partido Novo encaminharam um requerimento de informações após a imprensa divulgar a criação da auditoria interna na Receita. Aos parlamentares, a Receita afirmou que pagou R$ 490 mil para o Serpro realizar a apuração.
O Fisco também negou que havia pedido ao Serpro que realizasse investigações sobre os dados fiscais da família Bolsonaro. Segundo a Receita, o que foi solicitado uma lista de todas as solicitações de arquivos individuais que os servidores e os próprios titulares dos dados fizeram.
“A Receita Federal não pediu apuração ao Serpro sobre investigações acerca dos dados fiscais da família presidencial. Cumpre informar, no entanto, que a RFB solicitou ao Serpro os logs de acesso aos dados do senador Flávio Bolsonaro e pessoas físicas a ele relacionadas, incluindo o próprio acesso realizado pelos próprios titulares dos dados, por servidores da Receita Federal e por sistemas em processos automáticos”, afirmou a Receita.
Ministério Público de Contas pediu investigação ao TCU, mas não obteve retorno
Em outubro de 2020, dois meses após a Receita pedir a investigação ao Serpro, o subprocurador geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (MPTCU), Lucas Furtado, pediu para a Corte de Contas apurar se Bolsonaro estaria usando a estrutura pública para o “atendimento de interesses particulares seus e de sua família, como também para causar embaraços e dificultar investigação pela Receita Federal de atos ilegais dos quais seu filho”.
À reportagem, Lucas Furtado afirmou que não teve retornos do TCU e da Receita.
Sindicato ligado à Receita cobrou explicações sobre apuração interna
Em junho de 2021, o Sindifisco, que é a entidade sindical que representa os auditores da Receita, enviou um requerimento de informações para Tostes Neto, exigindo que a Receita informasse se houve, ou não, um vazamento de dados por parte de funcionários.
Em resposta enviada após 16 dias, o Fisco afirmou que a apuração interna já havia apresentado resultados, mas negou a apresentar informações sobre os servidores que teriam feitos acessos de log nos dados fiscais da família presidencial. “Sob pena de expô-los a hipotéticos e desnecessários riscos ou a eventuais constrangimentos injustificáveis”.
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